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  1. Eleições 2016: a esquerda não será mais a mesma.

    segunda-feira, 3 de outubro de 2016

    Como era de se esperar, o processo de impeachment e o bombardeio de denúncias de corrupção relacionados à Operação Lava Jato fizeram com que o Partido dos Trabalhadores fosse o maior derrotado desta eleição. Apesar das vitórias pontuais e da presença em algumas disputas de segundo turno, o PT será apenas uma sombra do que já foi considerando as administrações municipais. A menos que um fato novo ocorra, essa condição provavelmente se repetirá nas eleições de 2018, fazendo com que o partido perca a hegemonia na esquerda.
    [...] Vale lembrar, contudo, que a esquerda e seus ideais são maiores que partidos que dizem falar em seu nome e decepcionam o povo ao se tornar aquilo que mais criticavam no intuito de se manter no poder em âmbito federal. Esses erros fazem com que décadas se percam, passos sejam dados para trás, conquistas acabem lançadas no lixo. Mas a esquerda também é maior que as pessoas que não gostam de ler livros de história e acham que política pode ser feita sem reflexão sobre ela mesma. Porque a história de movimentos contra-hegemônicos é uma história de reconstrução.
    Um partido pode se esfacelar diante de seus erros e dos crimes de seus membros. Mas uma ideia, não. Líderes, falsos ou verdadeiros, caem a toda hora. Mas uma ideia, não. E a ideia da luta por justiça social e dignidade e pelo direito à identidade e ao combate à desigualdade nas grandes cidades e no campo - que norteia historicamente a esquerda - segue viva com movimentos, coletivos e organizações. Bem como a defesa de uma democracia popular e participativa, que continua existindo longe dos palácios e mais perto do povo.
    [...] O tempo chama a esquerda a refletir sobre seus erros, não só no Brasil, em todo o mundo. E a encontrar novos caminhos e construir resistência, que não significa apenas lutar contra retrocessos, mas apontar saídas - saídas que não podem excluir pobres, trabalhadores e minorias do mundo, pois o mundo só fará sentido se for construído com eles, por eles e para eles.
    [...] Não raro esquecemos que a história não caminha em linha reta e é a resultante de forças que variam em tamanho e intensidade de acordo com cada época. A democracia pressupõe alternância de poder. E, sim, os direitos que foram garantidos podem ser perdidos, incluindo a definição conceitual de coisas caras à nossa civilização, como dignidade e liberdade. Por isso mesmo que a ideia de diálogo é tão importante. É uma ideia paciente, da qual não podemos nos dar ao luxo de abrir mão. Precisa estar viva, nas ruas, nas conversas de bar, na grande política do nosso cotidiano e na pequena política dos parlamentos, gabinetes e tribunais. Ela que fará com que os diferentes não se odeiem e com que, ao final de contas, a barbárie da intolerância não triunfe. 
    - Leonardo Sakamoto.
    Para ler o artigo todo, clique aqui.

  2. Quando cursei o Ensino Fundamental e o Ensino Médio pouco ou quase nada se falou sobre a África. Apesar de terem ocorrido mudanças nas matrizes curriculares, como a tentativa de incluir aspectos históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais do continente africano, ainda existe uma certa resistência e preconceito por parte de escolas e professores em fazer uma abordagem mais profunda. Muitas vezes, inclusive, pela falta de preparo. Entretanto, os vestibulares mais disputados do estado de São Paulo estão apostando na literatura africana e, consequentemente, estimulando as reflexões. É o caso da Unicamp, que colocou em sua lista de livros Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto, e da Fuvest que inseriu Mayombe, do angolano Pepetela. 
    Nesta publicação, analisaremos Mayombe. Comprei muito despretensiosamente o livro e afirmo com convicção que foi um dos melhores que li este ano. Não havia tido contato com a literatura africana até então, e justamente por isso posso dizer que comecei muito bem, foi um tiro certeiro!

    Aspecto histórico
    Fonte: Reticência Jornalística
    Pepetela é o nome de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, que passou muitos anos de sua vida dedicando-se à luta pela independência de Angola. Foram treze anos de guerra sangrenta para livrar-se do domínio de Portugal, que só veio a ocorrer em 1975. Pepetela filiou-se ao Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA, uma organização totalmente anticolonialista e com tendência marxista. O objetivo do MPLA não era apenas o de libertar Angola, mas também promover uma revolução socialista no país - importante ressaltar que tanto a elaboração da obra quanto a independência de Angola tiveram como cenário a Guerra Fria com sua ordem bipolar. Mayombe foi escrito em 1970, durante o período de guerrilha do MPLA, e publicado em 1980, quando o movimento assumiu o governo do país. O título é uma referência à floresta tropical angolana, localizada na província de Cabinda.
    Embora a história comece com um grupo de combatentes numa operação de guerra, o enredo do livro não está focado no conflito armado, e sim na vida dos guerrilheiros do MPLA, evidenciando suas origens, convicções, fraquezas e dramas pessoais. Todos os nomes dos personagens que aparecem em Mayombe (bem sugestivos, por sinal) são, na verdade, nomes de guerra escolhidos pelos membros do movimento e que representam a condição de cada combatente, como Sem Medo, Teoria, Lutamos, Verdade, Milagre, Mundo Novo, Ingratidão e, claro, Pepetela.
    Um dos aspectos mais interessantes da obra é a associação das questões individuais de cada personagem às questões históricas de Angola. A famosa "Partilha da África" foi um episódio horroroso da nossa História, cuja finalidade era disciplinar a repartição amigável do continente africano e evitar uma guerra entre as potências imperialistas no final do século XIX. Apesar de toda a resistência africana, da intervenção militar e territorial e dos conflitos marcados fortemente pela violência desmedida, a divisão das fronteiras do continente estabelecidas pelos países desenvolvidos ignoraram as diferenças étnicas e culturais entre os povos nativos. Pepetela destaca essas diferenças e as rivalidades tribais dentro do MPLA, que é um grupo muito heterogêneo, o que nos faz concluir que além de combater os portugueses, o MPLA também precisava derrubar as fronteiras tribais em nome da unidade nacional. E qual foi o resultado? Logo após o processo de descolonização, quando Angola tornou-se independente, grupos de luta armada se envolveram numa longa guerra civil que durou, com algumas tréguas, até 2002 e que acarretou na morte de 500 mil pessoas. Ou seja, uma vez que o inimigo comum e externo foi eliminado, o conflito tornou-se puramente interno e étnico, tornando-se mais um capítulo trágico da história da África.

    A construção dos personagens
    O processo de humanização dos personagens que Pepetela constrói ao longo da obra é notável! Falo em humanização por conta do modo como a complexidade de cada personagem é explorada, como as personalidades vão se revelando e, sobretudo, porque o autor não apresenta os combatentes como "heróis do povo"; são indivíduos que carregam conflitos subjetivos específicos e fardos existenciais. Como dito anteriormente, os guerrilheiros do MPLA constituem um grupo bem diverso, formado tanto por camponeses quanto por letrados na Europa com as mais diversas correntes de pensamento da esquerda. Convém destacar a língua portuguesa como elemento de unificação do grupo, tendo em vista as origens distintas de cada um.
    Elenquei os personagens mais marcantes, aqueles que merecem um olhar bem atento e cuidadoso:
    Teoria é um combatente que, como o próprio nome diz, é o professor da turma. Sente-se inferior a todo momento por ser mestiço. O peso que carrega pela cor da pele está ligado à autoaceitação, uma vez que seus próprios amigos não dão importância para este fato. A forma como se apresenta não deixa dúvidas: "Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta".
    Sem Medo é, a meu ver, o personagem mais apaixonante do livro e que deve ter exigido muito estudo para a sua construção. Um comandante extremamente ético, líder, inspirador e pé no chão. Sua visão política não é a de um revolucionário ingênuo. Tem consciência dos percalços para a consolidação da independência e da revolução socialista e as dúvidas acerca desta concretização não o impedem de lutar mesmo sabendo que, caso a revolução ocorra em sua totalidade, não estará vivo para presenciá-la. É uma espécie de pai para o Comissário, que está em processo de amadurecimento afetivo e sofre com esta metamorfose. A frase que considero mais profunda na obra é dita por Sem Medo: "Queremos transformar o mundo e somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos ser livres, fazer a nossa vontade, e a todo momento arranjamos desculpas para reprimir nossos desejos. É o pior é que nos convencemos com as nossas próprias desculpas, deixamos de ser lúcidos. Só covardia. É medo de nos enfrentarmos, é um medo que nos ficou do tempo em que temíamos a Deus, ou o pai ou o professor, é sempre o mesmo agente repressivo. Somos uns alienados. O escravo era totalmente alienado. Nós somos piores, porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes que já se quebraram mas continuamos a transportá-las conosco, por medo de as deitarmos fora e depois nos sentirmos nus".
    Ondina, por sua vez, é a única personagem mulher em Mayombe. É instruída, livre afetiva e sexualmente e não ignora seus desejos. Daí resultam seus problemas com o Comissário, com o MPLA e seus envolvimentos com outros personagens. Ondina é autêntica e representa a liberdade feminina, sem idealizações.
    Em certa medida, a própria floresta Mayombe é personificada e vista como mãe dos combatentes. Reflete o que eles vivem e se apresenta como um espaço de luta e solidão, mas que acolhe a todos. Ela é um elemento importante no enredo, que ganha vida própria e se torna protagonista. Pepetela idealiza o Mayombe como a grande referência e símbolo de Angola e seu povo. Talvez seja por isso que são os elementos naturais que marcam a ação e a passagem do tempo, e não o tic-tac mecânico.

    Concluindo
    Mayombe é um romance político, uma história de guerra que mescla acontecimentos e personagens reais com elementos ficcionais. Com uma estrutura narrativa em terceira pessoa e relatos em primeira pessoa, esta obra de influência marxista e socialista (porém longe de ser uma cartilha de doutrinação) envolve a luta pela independência de Angola e a pluralidade de ideias sobre a vida com grande profundidade filosófica. O mérito de Pepetela é que, através de uma escrita poética maravilhosa, ele parte de um contexto histórico local e atinge questões universais, independentemente das épocas e das culturas, explorando as consciências individuais e coletivas simultaneamente.

  3. Leituras para compreender o impeachment

    segunda-feira, 5 de setembro de 2016

    Os últimos dias registraram um dos momentos históricos e políticos mais importantes do Brasil. O impeachment da presidente Dilma Rousseff, aprovado pelo Senado Federal no dia 31 de agosto, não foi o show de horrores que assistimos na Câmara dos Deputados. Mesmo sabendo, penso eu, que perderia seu mandato, Dilma enfrentou 14 horas de interrogatório. Para alguns, a cara de pau mais desmedida; para outros, o exemplo da verdadeira coragem e do filho que não foge à própria luta, sobretudo por ter sido questionada por representantes escancaradamente criminosos - é importante ressaltar: 49 dos 81 senadores estão sendo investigados.
    A minha intenção desta vez é deixar três reflexões que, naturalmente, são condizentes com o modo como enxergo este momento tão conturbado que o Brasil enfrenta e que trazem um olhar muito rico e profundo sobre o impeachment.

    Primeiro aspecto: Direitista e esquerdista
    Direitista e Esquerdista é um artigo do Frei Betto que sugiro como leitura essencial para entendermos melhor a polarização política que se alastrou nas ruas, nas redes sociais e nas relações interpessoais. Publicado há quatro anos, o texto é super atual e nos mostra que, não importa o lado, estar em qualquer um dos polos não é saudável para o exercício crítico - é um verdadeiro diálogo de surdos. Isso não quer dizer que temos que ficar em cima do muro, mas o quanto a esquerda e a direita podem se encontrar na mesma face de uma moeda.
    "Os dois padecem da síndrome de pânico conspiratório. O direitista, aquinhoado por uma conjuntura que lhe é favorável, envaidece-se com a claque endinheirada que o adula como um dono a seu cão farejador. O esquerdista, cercado de adversários por todos os lados, julga que história resulta da sua vontade. [...] O direitista escreve, de preferência, para atacar aqueles que não reconhecem que ele e a verdade são duas entidades numa só natureza. O esquerdista não se preocupa apenas em combater o sistema, também se desgasta em tentar minar políticos e empresários que, a seu ver, são a encarnação do mal."

    Segundo aspecto: O golpe é bem mais complexo que uma briga entre esquerda e direita
    Enquanto o artigo de Frei Betto fica mais no plano teórico acerca da polarização, este texto, que na verdade foi um comentário de Miguel Gouveia em outra publicação, aborda o esgotamento de um sistema político e econômico carregado de conceitos, dados estatísticos e suas respectivas fontes. Suas ideias são desenvolvidas a partir da constatação de que a riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial agora equivale à riqueza dos 99% restantes. Para Gouveia, "a questão central é a seguinte: como equacionar o poder do 1% com as necessidades dos 99%. Isso não necessariamente desemboca numa discussão ideológica de esquerda vs direita. [...] O fato é: a continuar essa exploração indevida e sem controle, sem espaço para o social sem ser na forma de esmola, o confronto será inevitável. [...] Testemunharemos mais mazelas sociais de que tanto tememos e que também afetará, consequentemente, o 1%." 

    Terceiro aspecto: Desmontar de novo
    Que tipo de ruptura o Brasil enfrenta depois do impeachment de Dilma Rousseff? Esta é a pergunta a qual o sociólogo José de Souza Martins responde em seu mais recente artigo publicado no domingo, dia 04, no jornal O Estado de São Paulo. Após a votação na Câmara dos Deputados, afirmei que "longe de ser o advento de uma nova era, o impeachment representa, acima de tudo, o poder de uma classe política desinteressada pelo povo". José de Souza Martins enveredou pelo mesmo caminho: 
    "O passado que nos governa desde sempre continuará governando o nosso presente e o nosso futuro, não obstante a suposta ruptura representada pelo impedimento e perda do mandato da presidente da República. Nãos nos iludamos. Não foi uma ruptura inovadora porque não foi uma ruptura de superação. [...] Não somos criativos em política nem somos inovadores. Apesar das polarizações ideológicas, acabamos na prudência do repetitivo. Temos que fazer um grande esforço educacional para legarmos às novas gerações a superação dessa limitação. [...] Não só qual ruptura, mas também quem tornará o real legado da ruptura possível e dele extrairá a revelação das possibilidades do Brasil? Essa é a questão que abre o novo capítulo da história política brasileira. Temos mais perguntas que respostas. Qual é o Brasil desse legado? Na perspectiva deste presente tumultuado, qual é o futuro de uma nação que não tem como se desfazer do fardo de uma história social e política que a oprime, que a tolhe? O cenário sugere que esse Brasil é um pão amanhecido. A sociedade está desmobilizada, subjugada por bandeiras corporativas e obsoletas, iludida pela concessão de direitos no papel mas não realizáveis."

  4. Sobre guerras e crianças

    sexta-feira, 19 de agosto de 2016

    A História se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. (Karl Marx)

    Vietnã. Fonte: Café História    




    Sudão. Fonte: Amor pela fotografia

    Criança refugiada síria em praia na Turquia. Fonte: Exame

    Síria. Fonte: BBC

    O senhor da guerra não gosta de crianças.

  5. Pokémon Go e a Hiper-realidade

    quinta-feira, 11 de agosto de 2016

    O desenho Pokémon fez parte da minha infância e de milhares de outras pessoas, isso há praticamente duas décadas. Quem diria que a marca atravessaria gerações, obteria faturamentos bilionários e que o Pikachu se tornaria um ícone pop!
    Fonte: Pokémon.
    Fazendo um breve retorno às origens, vinte anos atrás a internet era pouquíssimo acessada, funcionava apenas em computadores de mesa e através de cabos telefônicos. Era cara e lenta - a internet discada, como falávamos. Na minha casa, o nosso pacote prodígio era de dez horas mensais, para três pessoas. Ou seja, em tese eu só podia usar a internet três horas e meia durante todo o mês! Mas também não era como hoje, com milhões de sites e redes sociais; ela tinha suas particularidades. Os celulares serviam basicamente para fazer e receber ligações e alguns mandavam mensagens de texto. Por fim, os videogames eram conectados aos televisores e o máximo que se podia fazer era disputar com os amigos, familiares e vizinhos, em casa mesmo ou em locadoras, uma vez que não era conectados à rede.
    O jogo Pokémon Go, lançado pela Nintendo, reúne precisamente toda a evolução tecnológica da internet, dos celulares e dos jogos, numa época de domínio hegemônico das redes e de praticamente mais nenhum limite entre e o virtual e o offline. A internet deixa de ser um "lugar" no qual "entrávamos" ou "navegávamos" e se mistura com a vida nua e crua. Pokémon Go é isso, duas dimensões interconectadas: criaturas que não existem aparecem em lugares concretos, a gameficação da realidade, a sociedade como uma rede social em movimento.
    Se antes falávamos de real e virtual como conceitos antagônicos, hoje se fala em realidade virtual. Cumprimos a maior parte de nossos afazeres em plena conexão, utilizamos nosso tempo de ócio e lazer quase sempre conectados.
    O ciberespaço tem sua dinâmica e impactos próprios, afetando nossa percepção, os filtros afetivos e o modo como assimilamos (e às vezes distorcemos) os fenômenos que se apresentam em nosso cotidiano. As experiências hiper-reais provocadas pelo excesso de likes, gadgets, redes sociais, matches, notificações, selfies e compartilhamentos alteram quase que por completo a noção de tempo (como usamos e vivemos), de espaço e da própria realidade. Mais do que nunca o corpo e a mente estão constante e interminavelmente submetidos a um bombardeio de estímulos, informações e sensações advindos da vida digital, provocando um curto-circuito psíquico e nos direcionando para um caminho incerto, pois ainda não sabemos como lidar e controlar todo este turbilhão. Ao contrário do que muitos imaginam, não desenvolvemos o domínio pleno da realidade virtual porque seu ritmo é dissonante do nosso e não acompanhamos sua dança.
    Não é de hoje que o homem desenvolveu múltiplos recursos que nos tiram da realidade factual, isto é, que nos deslocam para o que não é real e sim artificial. Neste caso, podemos mencionar tanto as substâncias que alteram o estado de consciência quanto as artes que apresentam alguma estrutura narrativa, como o cinema e a literatura. Contudo, enquanto Pokémon Go é apenas um entretenimento de fuga da realidade, as artes apontam caminhos para reflexões muito profundas sobre a natureza e essência humanas.
    A vida digital e seu forte amparo tecnológico têm construído a massificação de um estilo de vida pautado na hiper-realidade, criando padrões universais de comportamento e nos convocando para "jogar" continuamente. Numa era em que o simulacro se fundiu à realidade, já não é possível distinguir com facilidade o que é real e o que é apenas uma simulação do real.
    O curta Hiper-Realidade está aí para provar. 



  6. Stoner: simplicidade, sensibilidade e impassibilidade

    terça-feira, 19 de julho de 2016

    Recentemente, o canal Ler Antes de Morrer (que eu super recomendo) fez um sorteio de kits de livros e fui uma das ganhadoras. Confesso que não via a hora que os meus livros chegassem para começar a leitura de Stoner, de John Williams. Já tinha lido muitos comentários sobre a profundidade da obra, e eu precisava saber o que Stoner tinha de especial.
    Fonte: Martins Fontes Paulista

    ** Atenção: contém spoiler **
    O livro foi publicado pela primeira vez em 1965 sem grande sucesso. Foi editado novamente em 2003 e se tornou um fenômeno literário nos Estados Unidos. Dez anos depois, Stoner já era um livro consagrado na Europa.
    Um aspecto muito interessante da obra é que logo no primeiro parágrafo quase toda a vida de William Stoner nos é revelada, da entrada na universidade até o seu leito de morte. Filho único de fazendeiros humildes de um pequeno povoado rural no Missouri, Stoner passa a infância e a adolescência ajudando os pais nas atividades campestres até o momento em que eles decidem mandar o filho para a faculdade de Ciências Agrárias a fim de melhorar as condições de vida da família. Na universidade, porém, Stoner descobre sua paixão pela literatura, troca de curso, conclui seus estudos como doutor em Literatura Medieval e passa a trabalhar como professor assistente, exercendo este único cargo até os seus últimos dias.
    A história de Stoner se passa entre as décadas de 1910 e 1950 e sua vida é ligada por três grandes eventos históricos: a Primeira Guerra Mundial, na qual perde um de seus únicos amigos; a Crise de 1929, que leva o pai de Edith, sua esposa, a cometer suicídio; e a Segunda Guerra Mundial, que abala psicologicamente Stoner e proporciona o sentimento agonizante de desperdício, de mortes em vão - a grande estupidez da humanidade.

    A obra e minha análise
    É difícil explicar por que o livro tem sido muito aclamado. Stoner não é uma obra épica, cheia de grandes acontecimentos. Durante toda a leitura, procurei aquele "algo especial" que falei no começo da publicação e não encontrei. Até a última frase esperei por alguma reviravolta, algo grandioso, e simplesmente nada acontece. Penso que a magia de John Williams foi esta: o autor não enfeitou seu protagonista e sua história de vida. Entretanto, não se nega a qualidade, a elegância e a sensibilidade da escrita. Este é, de longe, o maior mérito de Williams, pois quem lê Stoner logo é capaz de notar a realidade complexa a qual somos inseridos, um contexto denso descrito com simplicidade.
    A impassibilidade e o silêncio de Stoner são muito frustrantes. Ele tem consciência de sua insatisfação e de tudo o que lhe ocorre e, ainda assim, nada faz para mudar. É triste e, até certo ponto, revoltante ler os desdobramentos de seu casamento com Edith condenado ao fracasso. Edith é uma mulher desprezível, que destrói o "coração" de Stoner - seu escritório - e os laços que ele tinha com a filha quando pequena. Ela o ataca de todas as formas possíveis e a inércia de Stoner chega a ser irritante. Entretanto, a obra não deixa claro qual é o elemento trágico de Edith; ao leitor é óbvio que há algum acontecimento marcante em sua vida que faz com que ela aja de modo horrível, mas não se sabe exatamente o que é. E é justamente isso que me deixou intrigada quanto ao final, em que conseguimos perceber a pequena sintonia que o casal encontra nos últimos momentos de vida Stoner.
    Aos poucos nos damos conta de como a relação com Grace, sua filha, vai se tornando cada vez mais distante, mas este afastamento parece intencional por parte de Grace, já amadurecida. Ela mesma procura se desvincular do pesado ambiente familiar. E como faz isso? Engravidando de um colega qualquer da faculdade, casando-se e, tal como os pais, condenando-se a uma relação fracassada e infeliz. A insensatez de Grace, no entanto, é inútil: o marido morre em conflito durante a Segunda Guerra, ela distancia-se do próprio filho e se torna alcoólatra.
    O que dizer dos conflitos profissionais que encontramos neste livro? O professor Lomax se utiliza de todos os meios possíveis para destruir a carreira de Stoner por ter reprovado Charles Walker, um estudante nitidamente incompetente e fantoche de Lomax. John Williams não nos revela os motivos da postura inflexível e da incessante proteção de Lomax para com seu aluno.
    E claro que não podemos deixar de mencionar a peça mais fundamental do romance e da vida de Stoner: Katherine Driscoll, a jovem professora que entra sutilmente na história e acaba tomando conta de alguns capítulos. Stoner "rejeitara o amor como o paraíso de uma religião falsa". Na relação extraconjugal com Katherine, descobre-o como uma "parte do devir humano, uma condição inventada e modificada momento a momento e dia após dia, pela vontade, pela inteligência e pelo coração". É um envolvimento apaixonante: a sincronia sexual, emocional e intelectual dos dois é perfeita, encontram-se um no outro e realmente é o momento de maior felicidade da vida de Stoner. Sentem-se plenos e transbordam. Contudo, não podemos nos esquecer da passividade do protagonista, que tem a chance de ser feliz com Katherine, mas ambos se recusam a ultrapassar os limites estabelecidos pelo amor clandestino.
    Confesso que a leitura de Stoner é muito cativante e a escrita sensível faz toda a diferença. Porém, pelos comentários que tinha lido sobre o livro eu realmente esperava algo mais tocante. Quando terminei a leitura, pensei: "Acabou? Não vai acontecer mais nada?", talvez porque o meu desejo de querer ver Stoner lutando contra as forças que o destruíram fosse maior que tudo. No entanto, o modo como John Williams narra a morte de Stoner é realmente memorável.
    Stoner traz algumas questões fundamentais: primeiramente, nenhum personagem é, de fato, feliz. Essa fuga de um padrão de felicidade me atraiu bastante. Depois, há o aspecto mais filosófico: Stoner foi um homem que viveu na mais completa indiferença, sempre "mais ou menos". Até que ponto vale a pena viver "mais ou menos", resignado, sempre sendo empurrado pela força da correnteza? Que sentido atribuímos à vida? O que o amor, ou a falta dele, pode fazer conosco?

  7. Sobre o dia do rock

    quarta-feira, 13 de julho de 2016

    Fonte: Capital Teresina

    O dia 13 de julho é especial para a nação roqueira. Desde os simpatizantes até os mais fanáticos pelo rock and roll não deixam de comemorar.
    Mas por que 13 de julho? Porque nesse mesmo dia, em 1985, o vocalista da banda Boomtown Rats, Bob Geldof, organizou um evento que ficou conhecido como Live Aid. Este foi, certamente, inesquecível, pois até então em nenhum outro momento da história tantos artistas haviam se reunido para realizar apresentações memoráveis aos fãs espalhados pelo mundo todo.
    A finalidade do Live Aid era reunir bandas consagradas (como The Who, Black Sabbath, U2, David Bowie, Queen, Rolling Stones, entre tantos outros) a fim de arrecadar fundos para combater e reduzir a miséria e a pobreza no continente africano.
    O rock como gênero musical surgiu da combinação de outros três gêneros típicos da música americana: o blues, o jazz e o country. Passados tantos anos, hoje podemos elaborar uma árvore genealógica, desde a geração do "rock saúde" até a "exaltação das drogas", desde os primórdios do rockabilly até o grunge, passando pelo power metal, pelo punk e todas as demais variáveis. O rock possui diversos segmentos; portanto, não poderia deixar de ser alvo de intrigas, polêmicas e discussões entre grupos divergentes.
    Contudo, independentemente de se pertencer ou não a um desses grupos, o fato é um só: para os que realmente são adeptos do gênero, o rock é algo que não se ensina e não se aprende; na verdade se conhece e então pode passar a ser estilo de vida, sinônimo de liberdade e atitude, manifestação de caráter, movimento cultural e forma de expressão dos sentimentos. Tudo depende daquele que ouve. Também é verdade que para o rock não existe idade: ele atinge jovens e idosos no mundo inteiro, mesmo com suas peculiaridades de cada geração.
    Dono de várias faces, o rock se diferencia dos outros campos musicais por ser provido de um verdadeiro leque de combinações, harmonias, melodias, ritmos, batidas e intensidades. Até há uns tempos poderíamos dizer que havia certa fragmentação por décadas. Cada época possuía um estilo dominante e um anúncio do que possivelmente estava por vir. Hoje o cenário é outro. Ouve-se de tudo de todos os tempos. E a grande vantagem é que continuamos a eternizar os clássicos e a reproduzi-los. Os clássicos do rock exercem grande influência, são preciosos para quem os ouviu em primeira mão e nem um pouco menores para aqueles que hoje podem ouvi-los décadas depois. A essência é esta: eles sempre têm algo a mais para dizer.  
    O rock ganhou o mundo, conquistou gerações, atravessou limites e fronteiras, explodiu em festivais e em concertos e vem influenciando, desde sempre, milhares de pessoas. Muitas são as razões e as justificativas para explicar o quão atraente ele é, impossível uma única definição. Mas o consenso dos amantes do gênero existe e é bem simples: rock will never die!




  8. A geração de leituras fragmentadas

    terça-feira, 21 de junho de 2016

    Recentemente, a Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, uma iniciativa do Instituto Pró-Livro, divulgou alguns dados sobre os leitores brasileiros. Eles somam 56% da população e leem em média 4,96 livros por ano. Quantas pessoas você conhece que possuem uma paixão enorme pela leitura? Quando falamos de paixão, precisamos levar em conta a subjetividade de cada um. Muitos preferem utilizar o tempo vago empenhando-se em outras atividades que lhe dão prazer e não podemos lutar contra este fato, porém também não se pode negar que os índices da pesquisa são de causar entristecimento se considerarmos o poder enriquecedor de visão de mundo, de conhecimento, de articulação escrita e oral que os livros proporcionam a qualquer leitor disposto a mergulhar nesse universo de múltiplas possibilidades.
    Entretanto, a minha publicação possui um objetivo mais específico: o de questionar o quanto estamos lendo. Pode ser mais do que esperamos se excluirmos os livros e quero deixar claro que absolutamente nada os substitui, mas vale a pena refletirmos um pouco.
    Tal ideia me ocorreu após ler um artigo no qual o autor relata sua dificuldade e desespero por não conseguir mais ler livros, embora sempre tenha sido um leitor assíduo. Ele argumenta que o uso excessivo da internet tem provocado algumas mudanças, dentre elas o rápido cansaço ao pegar um livro e iniciar sua leitura. O mesmo acontece com os livros digitais, prova de que se há um problema, este é mais sério do que estava supondo. A grande questão – eu diria o xeque-mate de toda a história – é a afirmação do autor de que, na verdade, nunca leu tanto como agora. Foi a brecha para eu começar a escrever este texto: o poder normativo da leitura em fragmentos, em doses homeopáticas, está impedindo muita gente de ler livros e grandes artigos, tira a capacidade de concentração rapidamente e gerou um vício em boa parte da população.
    Sai o livro, entra a leitura fragmentada.
    Fonte: ShutterStock.
    O dinamismo virtual nos tornou mais factuais e esta é uma mudança que requer atenção. Por exemplo, no Facebook é comum vermos imagens que trazem alguma frase e posts curtos, o que significa que existe contato com a leitura, porém fragmentada, até visualizarmos outra publicação e repetirmos o processo. Textos como este nem pensar. Esses dias cheguei a ver a publicação de um amigo que não ultrapassava 10 linhas e um comentário: “preguiça de ler tudo isso”. Como é que um livro, nessas circunstâncias, pode ser capaz de prender alguém por muito tempo, e como este alguém pode ser capaz de se envolver com a trama, com os personagens e esperar pacientemente pelo desfecho da história? Difícil, pois parece enrolação. Ou às vezes apenas uma parte específica nos interessa e não temos paciência para o conjunto todo.
    Nós nos tornamos tão factuais e ansiosos que até aquela música que nos dá prazer é afetada por um comportamento pontual. Li um artigo cuja autora menciona um estudo que diz que 25% das músicas do Spotify recebem aquela “skipada”, isto é, são puladas após 5 segundos e que metade dos usuários avança a música antes do seu final. Agora eu pergunto: se não conseguimos ser pacientes nos momentos em que estamos focados naquilo que gostamos de ouvir durante o tempo livre, o que dizer do resto? Já não nos aprofundamos nem naquilo que era para ser fonte de prazer.
    Este é um problema de ordem social e generalizado. É como se nosso cérebro se viciasse na carga pesada de informações e precisasse ser constantemente alimentado por elas. Voltando ao começo, enquanto os livros são dotados de especificidades (enredo fixo, personagens, estilo narrativo), a internet parece mais um parque de diversões com a quantidade imensa de estímulos sonoros e visuais. É bom lembrar que ela é o nosso reflexo, seja bonito ou não de se ver. Talvez o momento seja de mudança e recondicionamento de hábitos. Será que conseguimos?

  9. Lição da semana

    sexta-feira, 27 de maio de 2016

    Dois acontecimentos que mostram claramente que esta é uma semana que pode ser jogada na lata de lixo da história brasileira.
    1 – Tivemos que engolir Alexandre Frota (um cara ignorante, insolente, cretino e estuprador confesso aplaudido por uma plateia ridícula em um programa ridículo) ser recebido para falar sobre educação. Sim, o homem que fracassou como lutador, ator pornô e cantor de funk certamente tem muito a nos oferecer na área mais desafiadora do país. O Brasil é ou não uma piada?
    2 – A menina estuprada por 30 homens. E que terá que conviver com esse pesadelo para o resto de sua vida. Justamente pelo fato de ocorrer com mais frequência do que as estatísticas apontam, a cultura do estupro existe, é aceita por muitos homens e mulheres e está nas propagandas de carros, cervejas, filmes e músicas. É um crime que tem amparo da sociedade civil! É o reflexo de uma sociedade que olha para o meu corpo já procurando “algo a mais”, que aponta o dedo para o tamanho das minhas roupas, que decide os lugares que devo frequentar e os horários que posso estar sozinha “sem correr risco”, que me diz que se eu bebi, fumei ou usei drogas sou merecedora da violência.

    Estou crente da incapacidade de olharmos um palmo à nossa frente e para os lados. Estou crente do cinismo e do machismo, como sempre estive. Estou crente de que estamos longe de ser uma nação que vai dar certo enquanto ainda precisarmos falar sobre isso.
     
    Lição. Fonte: Facebook.
     

  10. O Anti-Trump

    terça-feira, 24 de maio de 2016

    Sadiq Khan, à esquerda, eleito prefeito de Londres, e Donald Trump, possível candidato à presidência nos Estados Unidos. Fonte: RT.






    O acontecimento político mais importante das últimas semanas não foi o surgimento de Donald J. Trump como provável indicado presidencial do Partido Republicano, e sim a eleição de Sadiq Khan, muçulmano, filho de um motorista de ônibus londrino, ao cargo de prefeito de Londres.
    Trump não conquistou nenhum cargo político ainda, mas Khan, o candidato do Partido Trabalhista, esmagou o conservador Zac Goldsmith e assumiu a prefeitura de uma das maiores cidades do mundo, uma vibrante metrópole onde é possível ouvir todas as línguas. Em sua vitória, um triunfo sobre as calúnias que tentaram vinculá-lo ao extremismo islâmico, Khan se levantou pela abertura contra o isolacionismo, pela integração contra o confronto, pela oportunidade a todos contra o racismo e a misoginia. Ele foi o anti-Trump.
    Antes da eleição, Khan disse ao meu colega Stephen Castle: "Eu sou londrino, sou europeu, sou britânico, sou inglês, sou de religião islâmica, de origem asiática, de tradição paquistanesa, sou pai e marido".
    O mundo do século 21 será moldado por essas identidades multifacetadas tão subestimadas, pelas cidades florescentes que celebram a diversidade, e não por algum sujeito branco dado a agressões verbais, insolente, intolerante, defensor do princípio da "América em primeiro lugar", ansioso por construir muros.
    Vale a pena observar que, com a proibição da entrada de muçulmanos que não tenham a cidadania americana no país, proposta por Trump, Khan não teria permissão de visitar os Estados Unidos. Para usar uma das frases favoritas de Trump, isso seria um "desastre completo e total". Tornaria os EUA assunto de zombaria ainda maior para o mundo já horrorizado com a ascensão do candidato republicano.
    A eleição de Khan é importante porque desmente a fácil metáfora de que a Europa está sendo tomada pelos islamistas jihadistas. Ela enfatiza o fato de que os atos terroristas ocultam um milhão de invisíveis histórias de sucesso entre as comunidades muçulmanas europeias. Khan, um dos sete filhos de uma família de imigrantes paquistaneses, cresceu em habitações do governo e acabou se tornando um advogado da área de direitos humanos e ministro do governo. Ele obteve mais de 1,3 milhão de votos na eleição de Londres, uma vitória pessoal jamais igualada por um político na história britânica.
    Sua eleição é importante porque as vozes mais eficientes contra o terrorismo islamista são as dos muçulmanos e Khan foi preparado para se manifestar a respeito. Depois dos ataques de Paris, no ano passado, ele disse num discurso que os muçulmanos tinham um "papel especial" a desempenhar contra o terrorismo, "não porque sejamos mais responsáveis do que os outros, como alguns afirmaram equivocadamente, mas porque podemos ser mais eficientes no ataque ao extremismo do que quaisquer outros".
    Khan também quis falar à comunidade judaica da Grã-Bretanha, repudiando energicamente o crescente antissemitismo nas fileiras trabalhistas que, no mês passado, provocou a suspensão de Ken Livingstone, um ex-prefeito de Londres, do partido.
    Como George Eaton observou na revista The New Statesman: "Khan será uma personalidade de importância global. Sua eleição é uma censura aos extremistas de todos os quadrantes, de Donald Trump a Abu Bakr Al-Baghdadi, que afirmam que as religiões não podem coexistir pacificamente".
    Trump como político é o produto do medo e acima de tudo da revolta americana. Nas últimas semanas, um estudante da Califórnia em Bekerley foi escoltado para fora de um avião da Southwest Airlines porque foi ouvido falar árabe, e um italiano de tez escura e cabelos cacheados, economista da Ivy League, foi retirado de um voo da American Airlines por ter sido visto rabiscar cálculos matemáticos que seu vizinho de assento achou suspeitos.
    Trump - que o cientista político Norm Ornstein descreveu como "a pessoa mais insegura e egoísta do país" - é o porta-voz dessa América assustada  que vê ameaças em toda parte (até num matemático italiano).
    Quando Trump declara: "A 'América em primeiro lugar' será o tema principal e predominante do meu governo", o que o resto do mundo ouve é uma nação revoltada exibindo o seu poder.
    A ascensão de Khan, ao contrário, é uma história de vitória sobre os medos gerados pelos atentados de 11 de setembro. Sua vitória é uma censura sobre Osama bin Laden, ao Estado Islâmico, à ideologia jihadista de todos os quadrantes - e aos políticos que disseminam o ódio como Trump que escolheu o lema "muçulmano igual a perigo". Khan argumentou que uma maior integração é essencial e que "muitos muçulmanos britânicos crescem sem conhecer pessoas de uma cultura diferente".
    Sigmund Freud escreveu: "É impossível menosprezar a medida em que a civilização vem sendo construída sobre uma renúncia ao instinto". Donald Trump escreveu: "Aprendi a ouvir e a confiar no meu instinto. Ele é um de meus mais valiosos conselheiros". E recentemente ele disse: "Nós, enquanto nação, devemos ser mais imprevisíveis".
    Muito bem.
    Se juntarmos um egoísta, um machão, um poder imenso e a predileção pela imprevisibilidade dirigida pelo instinto, obteremos uma mescla perigosa que poderá pôr em risco a própria civilização. Se Trump for eleito, aqueles seus dedos finos terão acesso aos códigos nucleares.
    Nesse contexto, a vitória de Sadiq Khan nos tranquiliza porque ele representa certas correntes mundiais - que buscam a identidade global e a integração - e que vão se provar mais fortes com o tempo do que com o tribalismo e o nativismo de Trump.

    Texto de Roger Cohen. Artigo original publicado no The New York Times.

  11. As instituições políticas brasileiras quebraram

    segunda-feira, 9 de maio de 2016

    Sobre a decisão de Waldir Maranhão anular a votação da impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, o melhor posicionamento, o encaixe mais proporcional e coerente de ideias ficou para o crítico de cinema Pablo Villaça. Portanto, faço questão de compartilhar o seu texto como representação do meu olhar.

    As instituições políticas brasileiras quebraram.

    Não há como tirar outra conclusão: quando as instituições passam a depender mais da personalidade e das motivações daqueles que as dirigem do que das leis e de seus regimentos internos, é porque algo está muito errado.
    Quando o STF suspendeu o mandato de Eduardo Cunha, há alguns dias, ponderou que ele estava usando seu posto de forma indevida para influenciar os deputados, as votações e seus resultados. Ora, se isto é verdade (e todos sabemos que é), por que o pedido para afastá-lo, que se encontrava nas mãos dos ministros do Supremo desde dezembro, só foi julgado depois que Cunha havia promovido aquela que certamente é a mais importante votação do plenário dos últimos 20 anos?
    Se outro deputado fosse presidente da Câmara nos últimos meses, o processo de impeachment teria avançado como avançou? E se a presidente do Senado fosse, digamos, Vanessa Grazziotin?
    Pois é: quando a mudança de apenas uma pessoa pode provocar alterações tão gigantescas, isto significa que as instituições se tornaram menores do que as personalidades que abrigam. Uma democracia não deveria funcionar assim.
    Pablo Villaça. Fonte: Facebook
    Quando soube que Waldir Maranhão havia anulado a infame sessão de votação do impeachment na Câmara (bem como as duas anteriores), celebrei, claro. Em resposta a um tweet do "jornalista"/porta-voz do golpe Ricardo Noblat, que protestou por "um homem anular os votos de 367 deputados", respondi que não via nada de absurdo, já que estes 367 haviam anulado os votos de 54 milhões de brasileiros.
    Por outro lado, que nossa democracia dependa de alguém como Waldir Maranhão para salvá-la é uma tragédia em si mesma - e perceber que chegamos a este ponto é desesperador. Não à toa, boa parte daqueles que haviam se calado depois da votação e procurado se distanciar de Cunha voltaram hoje ao ataque condenando seu vice - e é irônico como acusaram a ação deste último de "golpismo" e de "falta de legitimidade" quando foram eles quem jogaram a Constituição no lixo e passaram a defender uma presidência ilegítima como a de Temer.
    (Pois como é possível que um vice conspire contra a chefe do Executivo e planeje colocar em prática todo o projeto daqueles que foram derrotados na eleição, chegando a convidar vários da oposição derrotada para seu "governo"?)
    O fato é que hoje o Brasil é um estado tomado pelo caos. Na tentativa de destituir Dilma, a oposição mantém o país parado há um ano e meio - e depois protesta contra a crise. A Câmara passou a ser liderada por um bandido que desfazia todas as votações cujos resultados lhe desagradavam, o STF se fez de cego para o que ocorria, o judiciário se tornou arma de intimidação política, a mídia incentivou e aplaudiu todos os absurdos cometidos em prol do golpismo e o Executivo se fez de morto, esperando sei-lá-o-quê para tomar controle da situação e recolocar o país no eixo.
    Todos agindo como crianças birrentas, despreparadas e inconsequentes.
    E agora somos uma piada de mau gosto para o resto do mundo graças ao espetáculo da votação embaraçosa do impeachment por deputados obviamente despreparados para o cargo e, agora, pelo braço-de-ferro inacreditável entre as casas do Legislativo e a inação do Supremo.
    Mas é isso que acontece quando as regras democráticas são ignoradas: o vale-tudo passa a imperar e o poder é tomado não necessariamente por quem tem a legitimidade para fazê-lo, mas por quem joga melhor o jogo, mesmo apelando para trapaças.
    E só não digo que a única saída são eleições gerais imediatas porque temo que os vencedores não teriam uma qualidade melhor do que a que vemos hoje.
    Ou seja: estamos do jeitinho que a direita gosta. O impeachment é só o sintoma mais visível da doença.



  12. A máquina do tempo e a essência da humanidade

    terça-feira, 26 de abril de 2016

    A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, é a obra que dá início aos demais livros com o tema "viagem no tempo". Wells é fruto da mentalidade do século XIX (o livro foi publicado em 1895): a industrialização que produziu avanços técnicos e científicos e que afirmou o domínio do homem sobre o espaço e a natureza.
    Inicialmente, a narrativa é feita por um personagem secundário e que sequer sabemos seu nome. A história começa em meio a um jantar na casa do protagonista, um cientista intitulado apenas como Viajante do Tempo, e com uma discussão matemática entre os convidados - o tempo como uma quarta dimensão. O Viajante é descrito como "um desses indivíduos que são inteligentes demais para poderem contar com nossa credulidade". Disposto a provar sua teoria, ele tem a ideia de construir uma máquina para viajar no tempo e faz um teste com um protótipo diante de todos. Já em outro jantar, algo inusitado acontece: os homens que aguardavam o Viajante para o banquete se surpreendem ao vê-lo em farrapos e machucado. Nosso protagonista decide contar a experiência incrível que viveu utilizando sua Máquina do Tempo. Daí em diante ele assume a narrativa do livro para nos apresentar tudo o que viu.
    Fonte: Submarino
    O ano é de 802.701 e o mundo parece estar abandonado, com claros sinais de decadência. Não existem governos ou instituições. O Viajante questiona o que teria acontecido aos homens daquele tempo, até se deparar com seres que possuem características humanas. São os Elóis, criaturas de aparência muito bonita, porém frágeis, pequenas e emocionalmente deficientes. O Viajante nota que eles não trabalham, gostam de brincadeiras e de agrados, são rigidamente vegetarianos (não há sinais de animais) e são desprovidos de qualquer preocupação, a não ser a escuridão.
    Ao se dar conta do sumiço da Máquina do Tempo, o cientista resolve procurá-la desesperadamente e tenta se acostumar com a ideia de adaptação à nova realidade. Nesta busca, ele descobre um outro grupo de herdeiros da espécie humana, uma espécie que tinha vida subterrânea contrapondo-se aos seres do "mundo superior". São os Morlocks, de pele muito branca e olhos avermelhados. O Viajante, convicto de que sua invenção está com os Morlocks, resolve adentrar no universo sombrio dessas criaturas e se depara com dois fatos: tudo o que ainda é produzido no mundo está a encargo dos Morlocks. O segundo é que estes saem do subsolo durante a noite para capturar Elóis, servidos de alimento. Eis a explicação para o enorme medo da escuridão que os habitantes da superfície possuem. Mais que isso: o Viajante percebe rapidamente que pode ser presa dos Morlocks. A história do Viajante é de como conseguiu lidar com tantas adversidades e de como conseguiu regressar à sua casa para poder contar esta aventura aos seus convidados.
    A proposta de Wells nesta obra é mostrar sua visão de futuro nada muito otimista. É a ideia do capitalismo levado até às últimas consequências. Por ser um livro pequeno, não prosseguirei com os acontecimentos da narrativa, mas apresentarei algumas informações e o turbilhão de ideias contidas em tão poucas páginas para que possamos compreender a riqueza desta produção.
    Primeiramente, A Máquina do Tempo não é um livro rico em detalhes e as descrições estão em boa medida. Justamente por isso, deixa aberta a lacuna da criação do poderoso invento capaz de se deslocar para o futuro ou para o passado. Wells não se  preocupou em argumentar cientificamente o funcionamento da máquina e chegou a ser criticado por Julio Verne, autor de clássicos como Vinte mil léguas submarinas e A volta ao mundo em 80 dias.
    Umas das primeiras reflexões apresentadas no futuro imaginado por Wells é o declínio da humanidade como uma consequência de todos os esforços empreendidos pelo homem, tendo como eixo o problema da segurança - uma ambição completamente presente tanto no século XIX (quando a obra foi escrita) quanto nos dias de hoje. Na visão do autor, o processo civilizatório, que tornaria a vida mais segura, conduziria ao enfraquecimento humano. Ao mesmo tempo, Wells nos proporciona um cenário no qual parece haver um equilíbrio natural da vida animal e vegetal, justificando a ausência da força física e da violência.
    Não é à toa que a espécie humana encontra-se dividida entre Elóis e Morlocks. A influência marxista que fervilhava no século XIX de uma sociedade dividida em burgueses e proletários é refletida na obra. Uma observação é que na época de H. G. Wells existiam muitas fábricas subterrâneas em Londres, reforçando a semelhança entre a classe operária e os Morlocks. O mais interessante, contudo, é que os Elóis e Morlocks naturalizaram suas condutas e estilos de vida. Nesse sentido, não há "luta classes". Os Elóis, considerados superiores, não exploram os Morlocks e estes não têm a menor pretensão de se revoltarem contra os primeiros. É como se ambos não conhecessem outra forma de viver, porque "sempre foi assim". 
    Outra similaridade que pode ser encontrada reside no fato dos Morlocks não terem o desejo de "crescer na vida". Muitos trabalhadores, como sabemos, exercem o labor apenas para suprirem suas necessidades e pagarem as contas. O modo como os Elóis se portam pode ser comparado às classes mais favorecidas economicamente, que não olham para as camadas inferiores da sociedade, porém se intimidam com atos que podem abalar ou desequilibrar o padrão de vida dos abastados. Como percebemos, resumir Elóis e Morlocks à teoria marxista soa bem simplista. 
    A ideia mais marcante, na minha opinião, é a do suicídio do intelecto no futuro. Os Elóis cientes de seu poder e conforto, os Morlocks com a certeza de suas condições de vida: a sociedade perfeita. E Wells conseguiu exprimir seu pensamento de uma forma tocante: "É uma lei da natureza, de que tantas vezes descuidamos: que a versatilidade intelectual é a nossa compensação por enfrentar as mudanças, os perigos, os problemas. Um animal em perfeita harmonia com seu ambiente é um mecanismo perfeito. A natureza nunca apela para a inteligência senão quando o hábito e o instinto são incapazes de resolver um problema. Não existe inteligência onde não existe mudança. Os únicos animais que demonstram inteligência são aqueles que tiveram de enfrentar uma grande variedade de necessidades e perigos".
    Wells afirmou, quatro décadas mais tarde, o quanto achou tosca a divisão entre Elóis e Morlocks em sua primeira obra. Talvez não tivesse se dado conta da quantidade de elementos e analogias que muitos fariam posteriormente. Recomendo este clássico da literatura mundial pelas questões que são abordadas, mas para os que gostam de leituras mais densas e aprofundadas, A Máquina do Tempo pode deixar a desejar.